Luís Ralha<br>Um grande artista<br>politicamente empenhado
«Toda a arte tem uma função social, toda a proposta contém uma ideia sobre o mundo e sobre a espécie humana» disse Luís Ralha por ocasião de uma exposição de pintura, das muitas que realizou a partir dos anos oitenta. Mais do que muito que se diga e escreva sobre a sua obra esta frase é o paradigma que deu norte à sua actividade e tem na sua raiz o empenhamento político e social deste artista, deste artista comunista.
Anteriormente a sua actividade, desde que tinha terminado o curso de pintura na ESBAL (Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa), tinha sido dirigida sobretudo para a área do design industrial, onde se notabilizou imaginando e realizando inúmeros projectos que lhe conferiram notoriedade, quando em Portugal o design era disciplina sem autonomia nem reconhecimento ao nível do ensino que se introduzia no vocabulário comum pelo empenhamento de alguns profissionais com formação noutras áreas, a arquitectura, a escultura, a pintura.
Esse exercício deu-lhe um rigor de execução, de atenção ao pormenor, ao acabamento, ao cuidado colocado no projecto, no enunciado do projecto que transpôs para a pintura quando pintar ocupou mais espaço na sua actividade, mesmo um espaço quase exclusivo nas últimas dezenas de anos da sua vida, o que se reflectiu em muitas exposições individuais e colectivas depois de, durante muito tempo, a sua actividade como pintor, sua formação base, ser quase secreta.
Importante também foi a sua acção como professor de design, na ESBAL, na Universidade do Porto e em cursos de formação na Escola Superior de Arte e Design, propugnado a qualificação do design, a melhoria da qualidade do ensino, a atenção aos novos materiais e às novas tecnologias, a exigência de os resultados surgirem na sequência de muito trabalho conceptual e material para que os objectos produzidos tivessem utilidade prática e fossem, simultaneamente, uma descoberta formal para quem os escolhesse e utilizasse cumprindo uma subliminar função pedagógica.
Por vezes revelava um desespero contido e calmo, expresso na sua voz de barítono com acentuação muito característica que nunca ultrapassava os decibéis necessários para ser escutada, pelos desvios provocados pelo sistema social e político sempre prontos a habilidades para iludirem o essencial. Desesperava quando projectos de design seus e de colegas seus eram distinguidos com prémios, seleccionados por méritos vários e não ultrapassavam o papel, a execução do protótipo, por não encontrarem empreendedores interessados em os produzirem industrialmente, reflexo de um país em que a celebrada e acalentada iniciativa privada pouco ou nada arrisca em investigação e desenvolvimento.
Descobrir o pedagogo
Desesperava por si, pelos seus pares e pelos seus alunos por ver que do muito que poderia entrar na cadeia da produção só muito pouco o era de facto, preferindo-se a cópia fácil, o lucro imediato em vez de um trabalho de fundo com resultados a longo prazo, mais consistentes e duráveis. Ironizava com os fogachos de um ou outro projecto de design, das várias áreas de design, que reclamavam mais da publicidade que do design e eram muito celebrados na luz do dia de um jornalismo pífio a iludir a realidade de um tecido industrial pouco atento às potencialidades do trabalho que os designers portugueses produziam tanto a nível dos projectos como do ensino. Divertia-se, e divertia quem o escutava, quando ironizava com os sucessos da moda e a contaminação induzida nas mentalidades com efeitos perversos nos objectivos do design até ao limite de objectos únicos serem classificados de design ou tudo, quase tudo, ganhar o estatuto de design nas alegrias mundanas de alguns eventos que mais não eram do que exactamente isso. Não que estivesse contra a moda, as virtualidades da moda, o valor acrescentado que tinha introduzido transversalmente, por exemplo, no pronto-a-vestir. Não podia era deixar de sublinhar os desvios que a superficialidade dos conceitos provocava erodindo os pilares fundamentais em que o design assentava. Ouvi-lo era o prazer de descobrir o pedagogo que se ia revelando, que pouco a pouco se ia revelando, olhando e comentando para o mundo que se desenrolava ao seu redor.
Viveu durante quase dez anos em Moçambique, trabalhando com artistas e artesãos locais, pondo em prática vários projectos de design de equipamento e industrial que exploravam os materiais locais mais comuns, desenvolvendo áreas experimentais, cruzando técnicas tradicionais com tecnologias mais modernas, adaptadas às condições económicas do país. Foi experiência que muito o marcou tanto pelo que ensinou como pelo que aprendeu, tanto pelo conhecimento que levou como pelo conhecimento que adquiriu, em condições de trabalho particularmente difíceis pelas limitações naturais num país recém independente e em que a exploração colonial era sobretudo agrícola. Um desafio à sua enorme capacidade de inventiva, ferramenta fundamental para resolver com os meios que tinha à sua disposição os problemas que lhe eram colocados. Desafio que deixou marcas embora ficasse muito aquém das expectativas de Luís Ralha, sempre pronto a ultrapassar as altas fasquias que colocava a si próprio. Disso falava com alguma nostalgia de olhar a brilhar de imagens exóticas e inesquecíveis, como inesquecível eram os laços que criara na sociedade moçambicana.
Como pão a levedar
Voltou a Portugal em 1984 e dois anos depois, sem nunca abandonar o design, começa a expor uma pintura de minúcias e detalhes preciosos, nos lances poéticos da Menina dos Balões, da indisfarçável angústia nas multidões que caminhavam para algum lado ou lado nenhum sob céus em fogo, no rigor de paisagens urbanas e industriais definidas em planos muito precisos, nas naturezas mortas com pormenores inusuais. O método que empregava no trabalho pictórico não é alheio da disciplina adquirida no trabalho de projecto de design industrial onde se têm que equacionar todas as questões fundamentais para que o objecto produzido corresponda às exigências de funcionamento em correspondência com uma imagem formal. Olhando-se para a pintura de Luís Ralha rapidamente nos apercebemos que existe uma ideia motora, que existe um projecto que antecede o desenvolvimento formal que se vai resolver no combate final com a tela, espalhando tintas, delimitando formas, colocando figuras humanas, vegetais ou minerais, registando ambientes, criando texturas dentro de um esquadramento de linhas que nunca são óbvias mas que se vão pouco a pouco descobrindo, dramatizando situações, colocando sinais, orientando olhares, dando sentido e significado à obra quando o artista a dá por finda para se iniciar o enunciado da fala do pintor com o (s) seu (s) interlocutor (es). Olhando para os seus quadros poderemos legitimamente presumir que é um trabalho que avança com propositada lentidão, como pão a levedar, a ser cozinhado em forno lento para adquirir toda a paleta dos seus sabores. Poderemos imaginar o pintor experimentando o prazer da mão empunhando os pincéis que fazem crescer na tela a imagem que ele sabe ir fazer aparecer mas que adquire toques inesperados logo aceites ou rejeitados, até um dia a dar por acabada.
Contrariamente a esse exercício pictórico as esculturas que projectou, algumas foram realizadas sendo a mais conhecida a que está em Alverca comemorando os 30 anos do 25 de Abril, são enxutas da multiplicação de sinais, tendo uma leitura mais imediata, o que não é sinónimo de menor complexidade. Poder-se-á atribuir essa diferenciação de linguagens ao conhecimento dos materiais e sua manipulação que acabam por conformar e enformar a expressão artística de Luís Ralha «em permanente confronto com todas as áreas de conhecimento.»
Esse exercício deu-lhe um rigor de execução, de atenção ao pormenor, ao acabamento, ao cuidado colocado no projecto, no enunciado do projecto que transpôs para a pintura quando pintar ocupou mais espaço na sua actividade, mesmo um espaço quase exclusivo nas últimas dezenas de anos da sua vida, o que se reflectiu em muitas exposições individuais e colectivas depois de, durante muito tempo, a sua actividade como pintor, sua formação base, ser quase secreta.
Importante também foi a sua acção como professor de design, na ESBAL, na Universidade do Porto e em cursos de formação na Escola Superior de Arte e Design, propugnado a qualificação do design, a melhoria da qualidade do ensino, a atenção aos novos materiais e às novas tecnologias, a exigência de os resultados surgirem na sequência de muito trabalho conceptual e material para que os objectos produzidos tivessem utilidade prática e fossem, simultaneamente, uma descoberta formal para quem os escolhesse e utilizasse cumprindo uma subliminar função pedagógica.
Por vezes revelava um desespero contido e calmo, expresso na sua voz de barítono com acentuação muito característica que nunca ultrapassava os decibéis necessários para ser escutada, pelos desvios provocados pelo sistema social e político sempre prontos a habilidades para iludirem o essencial. Desesperava quando projectos de design seus e de colegas seus eram distinguidos com prémios, seleccionados por méritos vários e não ultrapassavam o papel, a execução do protótipo, por não encontrarem empreendedores interessados em os produzirem industrialmente, reflexo de um país em que a celebrada e acalentada iniciativa privada pouco ou nada arrisca em investigação e desenvolvimento.
Descobrir o pedagogo
Desesperava por si, pelos seus pares e pelos seus alunos por ver que do muito que poderia entrar na cadeia da produção só muito pouco o era de facto, preferindo-se a cópia fácil, o lucro imediato em vez de um trabalho de fundo com resultados a longo prazo, mais consistentes e duráveis. Ironizava com os fogachos de um ou outro projecto de design, das várias áreas de design, que reclamavam mais da publicidade que do design e eram muito celebrados na luz do dia de um jornalismo pífio a iludir a realidade de um tecido industrial pouco atento às potencialidades do trabalho que os designers portugueses produziam tanto a nível dos projectos como do ensino. Divertia-se, e divertia quem o escutava, quando ironizava com os sucessos da moda e a contaminação induzida nas mentalidades com efeitos perversos nos objectivos do design até ao limite de objectos únicos serem classificados de design ou tudo, quase tudo, ganhar o estatuto de design nas alegrias mundanas de alguns eventos que mais não eram do que exactamente isso. Não que estivesse contra a moda, as virtualidades da moda, o valor acrescentado que tinha introduzido transversalmente, por exemplo, no pronto-a-vestir. Não podia era deixar de sublinhar os desvios que a superficialidade dos conceitos provocava erodindo os pilares fundamentais em que o design assentava. Ouvi-lo era o prazer de descobrir o pedagogo que se ia revelando, que pouco a pouco se ia revelando, olhando e comentando para o mundo que se desenrolava ao seu redor.
Viveu durante quase dez anos em Moçambique, trabalhando com artistas e artesãos locais, pondo em prática vários projectos de design de equipamento e industrial que exploravam os materiais locais mais comuns, desenvolvendo áreas experimentais, cruzando técnicas tradicionais com tecnologias mais modernas, adaptadas às condições económicas do país. Foi experiência que muito o marcou tanto pelo que ensinou como pelo que aprendeu, tanto pelo conhecimento que levou como pelo conhecimento que adquiriu, em condições de trabalho particularmente difíceis pelas limitações naturais num país recém independente e em que a exploração colonial era sobretudo agrícola. Um desafio à sua enorme capacidade de inventiva, ferramenta fundamental para resolver com os meios que tinha à sua disposição os problemas que lhe eram colocados. Desafio que deixou marcas embora ficasse muito aquém das expectativas de Luís Ralha, sempre pronto a ultrapassar as altas fasquias que colocava a si próprio. Disso falava com alguma nostalgia de olhar a brilhar de imagens exóticas e inesquecíveis, como inesquecível eram os laços que criara na sociedade moçambicana.
Como pão a levedar
Voltou a Portugal em 1984 e dois anos depois, sem nunca abandonar o design, começa a expor uma pintura de minúcias e detalhes preciosos, nos lances poéticos da Menina dos Balões, da indisfarçável angústia nas multidões que caminhavam para algum lado ou lado nenhum sob céus em fogo, no rigor de paisagens urbanas e industriais definidas em planos muito precisos, nas naturezas mortas com pormenores inusuais. O método que empregava no trabalho pictórico não é alheio da disciplina adquirida no trabalho de projecto de design industrial onde se têm que equacionar todas as questões fundamentais para que o objecto produzido corresponda às exigências de funcionamento em correspondência com uma imagem formal. Olhando-se para a pintura de Luís Ralha rapidamente nos apercebemos que existe uma ideia motora, que existe um projecto que antecede o desenvolvimento formal que se vai resolver no combate final com a tela, espalhando tintas, delimitando formas, colocando figuras humanas, vegetais ou minerais, registando ambientes, criando texturas dentro de um esquadramento de linhas que nunca são óbvias mas que se vão pouco a pouco descobrindo, dramatizando situações, colocando sinais, orientando olhares, dando sentido e significado à obra quando o artista a dá por finda para se iniciar o enunciado da fala do pintor com o (s) seu (s) interlocutor (es). Olhando para os seus quadros poderemos legitimamente presumir que é um trabalho que avança com propositada lentidão, como pão a levedar, a ser cozinhado em forno lento para adquirir toda a paleta dos seus sabores. Poderemos imaginar o pintor experimentando o prazer da mão empunhando os pincéis que fazem crescer na tela a imagem que ele sabe ir fazer aparecer mas que adquire toques inesperados logo aceites ou rejeitados, até um dia a dar por acabada.
Contrariamente a esse exercício pictórico as esculturas que projectou, algumas foram realizadas sendo a mais conhecida a que está em Alverca comemorando os 30 anos do 25 de Abril, são enxutas da multiplicação de sinais, tendo uma leitura mais imediata, o que não é sinónimo de menor complexidade. Poder-se-á atribuir essa diferenciação de linguagens ao conhecimento dos materiais e sua manipulação que acabam por conformar e enformar a expressão artística de Luís Ralha «em permanente confronto com todas as áreas de conhecimento.»